
Show do Gil! Eu dançava em êxtase quando, inesperadamente, fui tragada pelo chão, feito Hades raptando Perséfone. Desci, cai, permaneci sentada. Ele me puxou e me deixou ali, grudada na sua superfície, que sustentava o resto de mim que desvanecia. Narrativa realista: Minha pressão baixou. Mas ha muitas outras camadas na realidade. Muita coisa baixou ali junto comigo!
Foi a consciência do chão como apoio o que me trouxe de volta daquele segundo onde eu atravessava muito rapidamente a ponte entre terra e céu. A terra soberana me puxou pros seus braços. Exú terá que esperar um tanto mais pra me levar nesse passeio entremundos. O quadril-terra-âncora era peso e presença compacta e estática. Impossível levantar e nenhum desejo por levantar. Eu era chão. E tava tudo bem, tava tudo muito bem. O meu lugar era ali, daquele jeito.
Eu continuava dançando, agora sentada, de braços pro alto, louvando aquele agora, com respeito pelo momento, que era solene, grandioso. O mundo dançava ao meu redor e não havia medo algum. Eu me sentia protegida pela minha tribo.
Do chão-casa eu olhava pra cima e via as mulheres-amigas girando e dançando em volta de mim-chão. Mais acima de todas nós, a Lua, emoldurada pela cúpula aberta daquele imenso templo-estádio. Ao redor de todos, o Espaço, ocupado pelo guru-Gil, que nos inebriava com sua música e o seu/nosso Tempo Rei. Um ritual. O Tempo, o tempo de dar tempo pra ouvir o chão. O chão que me queria muito muito muito. Fui sua por quase uma hora. E me lembrei daquele segundo em que eu subia rápido demais e o chão me puxou, me quis aqui com vontade. Senti o seu amor por mim. O chão quer me ensinar tanto, quer me cuidar tanto…
Fui cuidada. Pelas mulheres lindas loucas amorosas extasiadas bacantes de Dioniso-Gil, fêmeas humanas que representavam ali toda a humanidade. Ainda que a própria humanidade também estivesse ali, com cuidados de hospital que agradeci mas dispensei. Eles não faziam ideia das tantas medicinas que eu recebia do chão. Meu corpo apoiado e seguro se nutria de chão desde as vísceras até os ossos. E eu recebia, recebia, recebia, cuidada e nutrida pela minha tribo.
Ali, diante de testemunhas, o mundo-chão-casa-Terra-Gaia me recebeu e me refez. Sentada no meio da ciranda de mulheres, eu recebia e aceitava. Aceitava a cura funda da dor e do terror absolutamente solitários, de ser mãe da loucura, de encarar e amar a loucura, uma experiência extrema que fez casa nos meus ossos, e antes, nos ossos de minha avó. Sem saber, as mulheres-amigas dançavam em volta de ossos exaustos e aterrorizados que eram refeitos ali com novas substâncias. A terra-mãe engoliu e levou pra longe tudo de denso que Saturno, o Deus do Tempo cronológico , guardara nos meus ossos. Eu me curvei diante dele, humilde, húmus, humana, terra, pedindo a sua benção. Ele me abençoou, me banhou de chão e me liberou: “É findo o Tempo da dor filha”.
O show terminou e o show da vida continua. E um esqueleto amado e acolhido emerge do chão e sobe pra Vida!Levanto do chão no meu Tempo, e amiga dele demais. Levanto Outra. Olho meus pares. Sou gratidão e regozijo. Elas se asseguram que eu estou de fato bem e vamos juntas comer, nutrir nossos corpos extasiados e famintos. Não sem antes caminhar pelas ruas de Brasília, pela madrugada, nos somando a procissão de público-bacante que saia do estádio.
É quando a violência humana emerge na madrugada na figura de uma jovem-mulher-fúria-bandida-faminta que urra a sua dor-sem chão bem do nosso lado. Narrativa realista: pessoa de rua roubando. Mas ha sempre muitas outras realidades. A cena é tensa, há confusão, agressão, medo. É quando a onça-mulher-fúria salta pra cima de outra que é jogada ao chão, como eu fora pouco antes. Num segundo, vejo golpes e chutes, e salto, também eu bicho, nas costas da mulher-revolta segurando-a pra impedir o massacre da outra-ela mesma? Somos todas uma.
A furiosa se foi, levando junto minha compaixão sincera, que se estendia a todas nós, a moça que apanhara e sobretudo, a que batera. Conheço a sua fúria e a dor que a alimenta. Conheço a fúria da mulher sem apoio. Somos todas Uma. A outra ficara, em choque. Vi e pude segurar a sua mão, olhar nos seus olhos tristes. Ela, perdida, confusa, aceitou, recebeu meu apoio-chão, assim como eu recebera pouco antes. Chão também é mãe. Somos todas uma. Dormi. Dormi com todas as mulheres do mundo.
O show de Gilberto Gil foi épico. O Tempo é Rei, as amigas Rainhas e o chão, casa.
“Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n’algum lugar
Ressuscitar no chão, nossa semeadura.
(…)
Drão, os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão, não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morre, nasce, trigo
Vive, morre, pão
Drão”
Anasha Gelli 8/6/25